Noel Rosa x Wilson Batista, por Roberto Paiva e Jorge Veiga [1974]
Tudo começou na década de 30, mais precisamente em 1933, quando Wilson Batista lançou lenço no pescoço, em que proclamava seu orgulho em ser vadio e associava a imagem do sambista à malandragem.
Lenço no Pescoço
Composição: Wílson Batista
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão
E eles tocam
E você canta
E eu não dou
Noel Rosa se sentiu incomodado com a associação e mandou logo uma resposta bem direta, compondo rapaz folgado, cuja letra não deixa margem a dúvidas sobre suas intenções.
Rapaz Folgado
Composição: Noel Rosa
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado
Wilson Batista sentiu-se ofendido pelo golpe inesperado e reagiu com o samba Mocinho da Vila, em que dispara:
Mocinho da Vila
Composição: Wilson Batista
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais
Se não quiser perder
Cuide do seu microfone e deixe
Quem é malandro em paz
Injusto é seu comentário
Falar de malandro quem é otário
Mas malandro não se faz
Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz
A elegante resposta veio com Feitiço da Vila, parceria com o pianista Vadico:
Feitiço da Vila
Composição: Noel Rosa / Vadico
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos,
Do arvoredo e faz a lua,
Nascer mais cedo.
Lá,
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café,
Minas dá leite,
E a Vila Isabel dá samba.
A vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço descente
Que prende a gente
O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora:
"Sol, pelo amor de Deus,
não vem agora
que as morenas
vão logo embora
Eu sei tudo o que faço
sei por onde passo
paixao nao me aniquila
Mas, tenho que dizer,
modéstia à parte,
meus senhores,
Eu sou da Vila!
achando que o canto de amor à Vila Isabel era uma fuga da briga e gostando da notoriedade alcançada pela mesma, Wilson Batista voltou ao ataque com:
Conversa fiada
Composição: Wilson Batista
É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço
Eu fui ver para crer e não vi nada disso
A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir dêm duas voltas no cadeado
Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o berço dos folgados
A lua essa noite demorou tanto
Assassinaram o samba
Veio daí o meu pranto
Mas mexer com a querida vila de Noel foi o erro fatal, que acabou sendo responsável pela composição de uma das maiores obras-primas do nosso samba palpite infeliz, em que o adversário é claramente desacreditado pela pergunta:
Palpite Infeliz
Composição: Noel Rosa / Araci de Almeida
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também
Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?
Apesar da violência da resposta (o próprio Wilson Batista se confessou arrependido, anos mais tarde, por ter se aproveitado do complexo de feiúra de noel), a canção Frankenstein da Vila, que diga-se de passagem, não chegou nem perto de desbancar o poeta da vila.
Frankenstein da Vila
Composição: Wilson Batista
Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração
Entre os feios és o primeiro da fila
Todos reconhecem lá na Vila
Essa indireta é contigo
E depois não vá dizer
Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo
A disputa ainda rendeu algumas réplicas, como João Ninguém, de Noel e Terra de cego, de Wilson Batista, por exemplo, mas a contenda já dava mostras de não possuir mais a mesma intensidade de antes, e os dois compositores já estavam mesmo virando amigos. Pouco tempo depois, em 1937, morreu o jovem Noel, aos 26 anos, não sem antes até compor junto com o antigo rival. Com certeza, quem mais saiu ganhando nesse duelo foi a música popular brasileira.
João Ninguém
Composição: Noel Rosa
João Ninguém
Que não é velho nem moço
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar...
Num vão de escada
Fez a sua moradia
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar
João Ninguém
Não trabalha e é dos tais
Mas joga sem ter vintém
E fuma Liberty Ovais
Esse João nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião
João Ninguém
Não tem ideal na vida
Além de casa e comida
Tem seus amores também
E muita gente que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém!
João Ninguém não trabalha um só minuto
E vive sem ter vintém
E anda a fumar charuto
Esse João nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião
Terra de Cego
Composição: Wilson Batista
Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba.
És o abafa da Vila, eu bem sei,
Mas na terra de cego
Quem tem um olho é rei.
Pra não terminar a discussão
Não deves apelar
Para um barulho na mão.
Em versos podes bem desabafar
Pois não fica bonito
Um bacharel brigar.
Fonte: http://mercadodepulgas.blogspot.com/2006/06/noel-rosa-x-wilson-batista-por-roberto.html
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