quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Música - Briga mais antiga








Noel Rosa x Wilson Batista, por Roberto Paiva e Jorge Veiga [1974]

Tudo começou na década de 30, mais precisamente em 1933, quando Wilson Batista lançou lenço no pescoço, em que proclamava seu orgulho em ser vadio e associava a imagem do sambista à malandragem.

Lenço no Pescoço

Composição: Wílson Batista

Meu chapéu do lado

Tamanco arrastando

Lenço no pescoço

Navalha no bolso

Eu passo gingando

Provoco e desafio

Eu tenho orgulho

Em ser tão vadio

Sei que eles falam

Deste meu proceder

Eu vejo quem trabalha

Andar no miserê

Eu sou vadio

Porque tive inclinação

Eu me lembro, era criança

Tirava samba-canção

Comigo não

Eu quero ver quem tem razão

E eles tocam

E você canta

E eu não dou

Noel Rosa se sentiu incomodado com a associação e mandou logo uma resposta bem direta, compondo rapaz folgado, cuja letra não deixa margem a dúvidas sobre suas intenções.

Rapaz Folgado

Composição: Noel Rosa

Deixa de arrastar o teu tamanco

Pois tamanco nunca foi sandália

E tira do pescoço o lenço branco

Compra sapato e gravata

Joga fora esta navalha que te atrapalha

Com chapéu do lado deste rata

Da polícia quero que escapes

Fazendo um samba-canção

Já te dei papel e lápis

Arranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotista

Que só serve pra tirar

Todo o valor do sambista

Proponho ao povo civilizado

Não te chamar de malandro

E sim de rapaz folgado

Wilson Batista sentiu-se ofendido pelo golpe inesperado e reagiu com o samba Mocinho da Vila, em que dispara:

Mocinho da Vila

Composição: Wilson Batista

Você que é mocinho da Vila

Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais

Se não quiser perder

Cuide do seu microfone e deixe

Quem é malandro em paz

Injusto é seu comentário

Falar de malandro quem é otário

Mas malandro não se faz

Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz

A elegante resposta veio com Feitiço da Vila, parceria com o pianista Vadico:

Feitiço da Vila

Composição: Noel Rosa / Vadico

Quem nasce lá na Vila

Nem sequer vacila

Ao abraçar o samba

Que faz dançar os galhos,

Do arvoredo e faz a lua,

Nascer mais cedo.

Lá, em Vila Isabel,

Quem é bacharel

Não tem medo de bamba.

São Paulo dá café,

Minas dá leite,

E a Vila Isabel dá samba.

A vila tem um feitiço sem farofa

Sem vela e sem vintém

Que nos faz bem

Tendo nome de princesa

Transformou o samba

Num feitiço descente

Que prende a gente

O sol da Vila é triste

Samba não assiste

Porque a gente implora:

"Sol, pelo amor de Deus,

não vem agora

que as morenas

vão logo embora

Eu sei tudo o que faço

sei por onde passo

paixao nao me aniquila

Mas, tenho que dizer,

modéstia à parte,

meus senhores,

Eu sou da Vila!

achando que o canto de amor à Vila Isabel era uma fuga da briga e gostando da notoriedade alcançada pela mesma, Wilson Batista voltou ao ataque com:

Conversa fiada

Composição: Wilson Batista

É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço

Eu fui ver para crer e não vi nada disso

A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado!

Antes de irem dormir dêm duas voltas no cadeado

Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o berço dos folgados

A lua essa noite demorou tanto

Assassinaram o samba

Veio daí o meu pranto

Mas mexer com a querida vila de Noel foi o erro fatal, que acabou sendo responsável pela composição de uma das maiores obras-primas do nosso samba palpite infeliz, em que o adversário é claramente desacreditado pela pergunta:

Palpite Infeliz

Composição: Noel Rosa / Araci de Almeida

Quem é você que não sabe o que diz?

Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!

Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,

Oswaldo Cruz e Matriz

Que sempre souberam muito bem

Que a Vila Não quer abafar ninguém,

Só quer mostrar que faz samba também

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo

Ao som do samba dança até o arvoredo

Eu já chamei você pra ver

Você não viu porque não quis

Quem é você que não sabe o que diz?

A Vila é uma cidade independente

Que tira samba mas não quer tirar patente

Pra que ligar a quem não sabe

Aonde tem o seu nariz?

Quem é você que não sabe o que diz?

Apesar da violência da resposta (o próprio Wilson Batista se confessou arrependido, anos mais tarde, por ter se aproveitado do complexo de feiúra de noel), a canção Frankenstein da Vila, que diga-se de passagem, não chegou nem perto de desbancar o poeta da vila.

Frankenstein da Vila

Composição: Wilson Batista

Boa impressão nunca se tem

Quando se encontra um certo alguém

Que até parece um Frankenstein

Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração

Entre os feios és o primeiro da fila

Todos reconhecem lá na Vila

Essa indireta é contigo

E depois não vá dizer

Que eu não sei o que digo

Sou teu amigo

A disputa ainda rendeu algumas réplicas, como João Ninguém, de Noel e Terra de cego, de Wilson Batista, por exemplo, mas a contenda já dava mostras de não possuir mais a mesma intensidade de antes, e os dois compositores já estavam mesmo virando amigos. Pouco tempo depois, em 1937, morreu o jovem Noel, aos 26 anos, não sem antes até compor junto com o antigo rival. Com certeza, quem mais saiu ganhando nesse duelo foi a música popular brasileira.

João Ninguém

Composição: Noel Rosa

João Ninguém

Que não é velho nem moço

Come bastante no almoço

Pra se esquecer do jantar...

Num vão de escada

Fez a sua moradia

Sem pensar na gritaria

Que vem do primeiro andar

João Ninguém

Não trabalha e é dos tais

Mas joga sem ter vintém

E fuma Liberty Ovais

Esse João nunca se expôs ao perigo

Nunca teve um inimigo

Nunca teve opinião

João Ninguém

Não tem ideal na vida

Além de casa e comida

Tem seus amores também

E muita gente que ostenta luxo e vaidade

Não goza a felicidade

Que goza João Ninguém!

João Ninguém não trabalha um só minuto

E vive sem ter vintém

E anda a fumar charuto

Esse João nunca se expôs ao perigo

Nunca teve um inimigo

Nunca teve opinião


Terra de Cego

Composição: Wilson Batista

Perde a mania de bamba

Todos sabem qual é

O teu diploma no samba.

És o abafa da Vila, eu bem sei,

Mas na terra de cego

Quem tem um olho é rei.

Pra não terminar a discussão

Não deves apelar

Para um barulho na mão.

Em versos podes bem desabafar

Pois não fica bonito

Um bacharel brigar.

Fonte: http://mercadodepulgas.blogspot.com/2006/06/noel-rosa-x-wilson-batista-por-roberto.html

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